sábado, 6 de outubro de 2012

Por uma escola flexível e uma pedagogia das diferenças

Por uma escola flexível e uma pedagogia das diferenças
Os caminhos tomados pelas escolas brasileiras para que acolham a todos os alunos, indistintamente, têm sido cortados pelo caráter eminentemente excludente, segregativo e conservador do nosso ensino, em todos os seus níveis e modalidades.
É inegável que, por estarem pautadas para atender a um aluno idealizado e segundo um projeto escolar elitista, meritocrático e homogeneizador, nossas escolas produzam quadros de exclusão que têm, injustamente, prejudicado a trajetória educacional de muitos estudantes.
A situação tem se arrastado pelo tempo e perpetuado desmandos e transgressões ao direito à educação e à não discriminação, em grande parte das vezes por falta de um controle efetivo dos pais, das autoridades de ensino e da justiça em geral sobre os procedimentos das escolas para ensinar, promover e atender adequadamente a todos os alunos.
Por esses e outros sérios entraves, é que a custa de muito esforço e perseverança estamos pouco a pouco vencendo as resistências de muitos para flexibilizar a organização escolar, pois sem essa flexibilização as mudanças continuarão sendo unicamente “de fachada”.
Não há como negar que vivemos o tempo das diferenças e que a globalização mais do que uniformizar, tem contestado identidades fixas, essencializadas, que dão estabilidade às instituições e ao mundo social. A mistura, a hibridação, a mestiçagem provocam, e questionam essas fixações, constituindo uma força transgressora que pode mudar o jogo! (Silva 2000; Serres 1993)
Identidades estáveis, acabadas, próprias do sujeito cartesiano unificado e racional estão em crise (Hall, 2000) e a idéia de identidades móveis, voláteis tem força para desconstruir as escolas que estão engessadas em suas medidas e mecanismos arbitrários de produção da identidade e da diferença.
Se o objetivo é desconstruir para flexibilizar os sistemas escolares, temos, então, de assumir uma posição contrária à perspectiva da identidade “normal”, que justifica essa falsa uniformidade das turmas escolares. A diferença é, pois, o conceito que se impõe para que possamos defender uma escola e uma pedagogia flexíveis e para todos.
Embora haja problemas com a identidade e a diferença, no sentido de se perceber de que lado nós estamos, dado que esse bipolarismo tem nos levado a muitas armadilhas, é preciso que se afirme a flexibilização ao privilegiarmos a diferença, quando a igualdade a esconde e/ou a nega.
A afirmação de Santos (1999) “temos o direito à igualdade, quando a diferença nos inferioriza e direito à diferença, quando a igualdade nos descaracteriza!” vem ao encontro do que a interpretação consentânea e inovadora de nossas leis oferece como fundamento de transformação das escolas. Todos têm o direito de freqüentar e de participar das escolas comuns, mas elas devem garantir aos alunos condições outras que a maioria das atuais, para que as diferenças de todos não inferiorize, limite, exclua ou discrimine alguns.
O convívio com alunos anteriormente excluídos das escolas comuns é recente e gera ainda muito preconceito, receios, insegurança. Essas reações às diferenças vêm das práticas de distanciamento dessas pessoas, como ocorre também com outras minorias; alimentando  o descrédito e reduzindo as expectativas dos professores quanto às possibilidades desses alunos acompanharem os colegas, nas turmas de ensino regular.
Resistindo às mudanças exigidas por uma abertura incondicional às diferenças, as escolas têm se esquivado dos desafios que levariam seus professores a rever e a recriar suas práticas e a entender as novas possibilidades educativas trazidas pela inclusão. Esses desafios vêm sendo neutralizados por políticas e diretrizes educacionais, programas compensatórios de reforço, aceleração, escolas especiais entre outras medidas. Falsas soluções para superá-los têm feito as escolas escaparem pela tangente e se livrarem do enfrentamento necessário para romper os fundamentos de sua organização pedagógica de caráter fechado e ultrapassado.
Ao atender às características desse tipo de organização, as escolas estão habituadas a categorizar e hierarquizar os alunos em grupos e nominações, arbitrariamente constituídos. Os territórios corporativos constituem outro alvo desafiante, principalmente quando se trata dos profissionais da Educação Especial.
Outros entraves provêm das soluções paliativas, que deturpam os princípios de uma educação para todos e que vão pouco a pouco minando o rigor desses preceitos, em nome de uma falsa flexibilidade, como os currículos adaptados, as atividades facilitadas, a terminalidade específica para alunos com deficiência.
Muitos professores de escolas comuns acreditam que um ensino diferenciado e adaptado às necessidades de alguns alunos é a solução para atender a todos nas salas de aula.
Diferenciar o ensino para alguns alunos não condiz com o que uma pedagogia das diferenças preconiza para flexibilizar as escolas e podemos cair em uma cilada, quando o ensino diferenciado remete o ensino à arte para alguns e a propósitos e procedimentos que decidem “o que falta” ao aluno, reforçando-se, assim, o conceito de que  a aprendizagem é  um processo regulado externamente. O aluno se adapta a novos conhecimentos, quando transpõe os conflitos cognitivos provocados pelo ensino de um dado conteúdo e essa adaptação testemunha a sua emancipação intelectual. Na escola flexível, a assimilação do conhecimento provém de um processo de auto-regulação ativa, no qual o aprendiz demonstra suas capacidades de relacionar e de incorporar o novo ao que já conhece e é essa regulação ativa que, ao nosso ver, deve ser buscada..
As práticas de ensino se tornam flexíveis quando consideram essa emancipação, que é própria de todos os alunos, independentemente da capacidade de aprender de cada um, e os reconduzem ao lugar de saber, do qual foram excluídos, na escola ou fora dela. Na mesma direção, as atividades escolares se diversificam para que todos os alunos possam escolhê-las livremente, em vez de serem pré-destinadas e direcionadas para um grupo ou outro da turma.
Rever a organização pedagógica das escolas, à luz de concepções de ensino e de aprendizagem inovadoras, e abandonar os arranjos criados para manter as aparências de práticas “bem intencionadas”, mas que acabam por atribuir ao aluno tão somente a responsabilidade de seu fracasso e incapacidade de acompanhá-las em todos os níveis de ensino, envolve coragem e humildade.
Sabemos da necessidade e da urgência de um ensino que atenda a todos os alunos nas suas diferenças. Flexibilizar as escolas não significa, contudo, abolir o rigor das propostas educacionais que primam pela qualidade ou tolerar os alunos que não atendem às suas exigências. Em uma palavra, a escola terá de enfrentar a si mesma, distinguir o modo como produz as diferenças nas salas de aula, seja agrupando-as ou considerando cada aluno o resultado da multiplicação infinita das manifestações da natureza humana e, portanto, sem condições de ser encaixado em nenhuma classificação artificialmente atribuída.
A escola das diferenças é um forte chamamento para que nos mobilizemos como pais e educadores em torno do movimento em favor da escola flexível. O perigo está em confundir flexibilização com facilitação e complacência, que rebaixam a qualidade do ensino e das relações que estabelecemos com as diferenças, ao produzi-las nas escolas.

Bibliografia:

BRASIL, Decreto 3.956/ de 08 /10/2001 promulga a Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Organização dos Estados Americanos: Assembléia Geral: Guatemala, 28 de maio de 1999.

HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 4ª edição, Rio de Janeiro: D P&A, 2000.

SANTOS, Boaventura de Souza. A construção multicultural da igualdade e da diferença.Coimbra: Centro de Estudos Sociais. Oficina do CES nº 135, janeiro de 1999.

SILVA, Tomás Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

SERRES, Michel. Filosofia mestiça: le tiers - instruit; trad. Maria Ignez D. Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

 Maria Teresa Eglér Mantoan, do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferenças Unicamp/FE. Palestrante do 7º Congresso Regional de Educação/FEUC

Nenhum comentário:

Postar um comentário